"De ser mulher
Abraão saiu sozinho da tenda para ouvir a voz de Deus, mas foi a Sara que coube, afinal, cumprir a profecia de uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu. Desde sempre as mulheres ordenaram o mundo, proveram às necessidades dos demais, geriram conflitos, acalentaram os sonhos alheios, cuidaram do quotidiano como se fosse uma glória (lavar a loiça, esfregar o chão...enfim pôr a tenda em ordem), atenderam ao detalhe sem perder de vista o fundamental (isto deve ser aquilo da árvore e da floresta) e alicerçaram o futuro da tribo nos pequenos gestos que tornaram hábeis (lá está...lavar a loiça, esfregar o chão, limpar o pó...enfim pôr a tenda em ordem), por uma pessoalíssima (já cá faltava um superlativo) inteligência do coração de que, como se sabe, são as principais detentoras (sim do coração, que os homens são uns malvados e cruéis que só sabem usar o cérebro). A tudo isto, as mulheres do meu tempo juntarem a capacidade e a disponibilidade de gerarem filhos na dor e ganharem o pão, também dos outros, com o suor do rosto (que coisa tão pirosa, mas enfim, é verdade).
O feminismo do século XXI não lhes presta homenagem que valha (aqui estamos de acordo, tia Mº José). E nem sequer a essa mulher sem tempo próprio, a vida em camadas sobrepostas de solicitações e responsabilidades, esticada entre tarefas múltiplas, deveres que a dividem e que não consegue dividir, complexos de culpa que atormentam as suas vigílias, segurando os afectos, a logística e os compromissos como um malabarista cansado (outra vez de acordo, tia Mª José).
É por isso que jurei não ser "feminista" (ah, tardou, mas chegou....já estava a ficar assustada!). É o meu modo de lhes demonstrar a minha admiração (eu também jurei nunca ser CDS como forma de lhes prestar a minha homenagem).
Criei-me num casarão predominantemente feminino. A minha avó cuidava, zelava e provia; a minha tia dominava a História, a Geografia e a Mitologia clássica; a minha mãe personificava a alegria e o glamour exercitando com aguda inteligência o sentido mais lúdico da vida; a minha ama, que tivera uma existência aventurosa, grande contadora de histórias, cozia a realidade e a fantasia (sofria de esquizofrenia, portanto). Todas falavam do humano e do divino, do estado do mundo, cientes da sua importância, diria, da sua imprescindibilidade. Os homens da casa eram, claro está, consideradíssimos (lá está outra vez o superlativo). Nenhuma disputava com eles estatuto de igualdade porque se consideravam aptas para qualquer desígnio.
Foi esta exuberância feminina que vi mais tarde exemplarmente descrita por Nélida Piñon ao decretar peremptoriamente que a narrativa é das mulheres, fiéis depositárias da memória, guardiãs do seu fio condutor, da sua trama, sem as quais nem Homero, nem Shakespeare, nem Cervantes teriam escrito coisa alguma (essa senhora Nélida também não era feminista, pois não?).
Mas os últimos 30 anos de feminismo, marcados pelo desiderato da igualdade pura e dura entre géneros (isto deve ser aquela história dos autos-de-fé aos soutiens), ocultaram a diferença essencial e o essencial da diferença. O resultado é inquietante e paradoxal: por um lado, as mulheres de extractos socioeconómicos baixos lutam, ainda, por uma igualdade básica e indissociável de um estatuto de dignidade. São as herdeiras das operárias norte-americanas que se manifestaram num longínquo 8 de Março, tentando reduzir os seus desumanos horários de trabalho, tendo sido violentamente reprimidas. São elas que, em última análise, homenageamos neste dia mundial. Um lembrete que se mantém actual… por outro, todo o discurso feminista parece esgotar-se na luta pelo poder, pelo domínio dos centros de decisão. E foi no âmbito desta disputa que a igualdade se assumiu como uma condição da almejada paridade (parir é connosco).
Confesso que esta lógica dominante me escapa (isso é porque a senhora já passou da idade de parir). É o direito à diferença que urge reivindicar (mas, minha senhora, 58% dos licenciados são mulheres e só 14 % ocupam cargos de topo na carreira científica, se isto não é uma diferença...). É a afirmação e não a paridade (vamos lá a ver, minha senhora, se as mulheres ganham 25% menos do que os homens e são mais atingidas pelo desemprego, afirmam-se aonde? Deve ser a empunhar cartazes e a gritar nas ruas...). São os resultados e não as medidas de discriminação positiva que conduzirão seguramente à mudança (isso é muito bonito de dizer, mas sabe, os homens pela sua natureza são uns grandes distraídos, só as mulheres têm a inteligência do coração...). É que o objectivo não é o de desalojar os homens, mas o de transformar esses domínios de rituais e regras masculinas em espaços onde a dimensão do feminino se manifeste como a mais-valia que é (mas que raio de história. Há homens melhores do que as mulheres e mulheres melhores do que os homens. Qual dimensão do feminino!). Os homens, pela sua natureza, são pouco atreitos a integrar os aspectos do quotidiano, o detalhe e o real. Só as mulheres podem, no intervalo de uma reunião, decidir telefonicamente trocar as almôndegas do jantar por um rolo de carne, lembrar que é preciso regar as plantas ou passar na tinturaria (coitados dos homens que vivem sozinhos, vivem numa pocilga cheia de plantas secas, certamente). Só elas podem, no meio da discussão de uma importante medida legislativa, escrevinhar, sem perder o fio à meada, a lista do supermercado (gostei desta imagem, pensar nas couves e nos brócolos ao mesmo tempo que discute a reforma do sistema eleitoral). São também elas que gostariam de poder deitar mão aos horários desordenados, ao desperdício de tempo, aos modos de funcionamento ineficazes. São elas que misturam com gosto racionalidade e emoção, cuidam da parte sem perder de vista o todo (outra vez a história da árvore e da floresta). Com elas, em regra, o combate político é mais aberto e franco, os consensos mais fáceis e o trabalho mais grupal (sempre podem falar das receitas do rolo de carne e do truque do raminho de alecrim. Deve ser a tal dimensão do feminino). Felizmente são hoje numerosos os exemplos que temos destas mulheres polifacetadas e multimodais. Mulheres que, em muitos países e organizações internacionais, revestiram a política com humor, sensibilidade, convicção, razoabilidade e um orgulhoso sentido de diferença. E só com elas e através delas a mudança se operará (vá esperando, minha senhora, vá esperando, mas sente-se no cadeirão Luís XIV do seu casarão)."
Maria José Nogueira Pinto (DN, 10/03/06 - bolds meus...claro)
Este discurso de "As mulheres são as maiores. Atrás de um grande homem está uma grande mulher. As mulheres querem é ser iguais aos homens" é dos que mais me irrita.
Agora estou à espera de ser trucidada pelos homens deste blog. Força!
Não há dúvida?!